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Sunday, December 8, 2013

SAÍ CEDO, LEVEI MEU CACHORRO - Kate Atkinson

"Talvez não tivesse perdido o bebê se não tivesse perdido o pai dele. Talvez tivesse sido o estresse. Ela havia começado a comprar roupinhas, luvinhas e sapatinhos. Tilly guardara uma das pequenas luvas durante anos, no fundo da bolsa, até que se desintegrara. Era realmente uma tolice.
A estação de Leeds era um caos; tantas pessoas correndo de um lado para o outro, os rostos sombrios. Todos correndo para pegar o trem, impacientes uns com os outros, consigo mesmos. Dando cotoveladas e empurrando. Que falta de maneiras!
As torres altas, os palácios gloriosos. Era tudo faz de conta, não era? A realidade, em si, não era nada. Palavras, tudo era feito de palavras, e quando você perdia as palavras, perdia o mundo. A tempestade que rugia ao redor dela. No alto-mar, em meio a uma ventania. Os homens nos barcos, o corpo neles batendo contra as águas geladas, depois de serem torpedeados. Afundando, afundando, afundando." (pg. 326, sobre Tilly e seus devaneios)
O livro é bem tranquilo de ler, linguajar fácil, um suspense. A dificuldade que senti foi a quantidade de nomes! Muitos personagens, com nomes nem tão fáceis de guardar. Mas acho que isso acontece porque a autora começa a história com uma cena em particular e, a partir dela, vai descrevendo a vida de vários dos personagens. Então isso torna, no princípio, um pouco confusa toda a trama. Mas depois que se pega o jeito da escrita é mais tranquilo. 

Trata-se de uma obra que dá bastante destaque a três temas em especial: sequestro de crianças, corrupção na polícia e problemas de memória na velhice (não sei o nome específico rs). A história gira, basicamente, em torno de um crime que aconteceu há muito tempo (35 anos antes do presente considerado no livro), um assassinato de uma prostituta e uma criança que é encontrada viva na cena do crime. A partir daí os personagens vão se encontrando, recontando o passado e construindo novas momentos. Há dois detetives que acabam se encontrando, trabalhando para clientes diferentes, buscando informações sobre o assassinato. A presença dos detetives - 'alguém fazendo perguntas' - deixa todos os envolvidos no episódio muito desconfortáveis, e momentos de violência e fuga passam a fazer parte do enredo. 

É um livro interessante. Quem quiser algo para distrair, essa é a dica. Alguns trechos do livro: 

"- Está aberto a interpretações, claro - disse ela. - Significa que a morte está aqui, mesmo neste simples paraíso, isto é, não há como escapar dela, colega. Um memento mori, por assim dizer, uma coisa tipo 'já fui um dia o que você é agora´. Ou significa que a pessoa que está morta também aproveitou as coisas boas da vida um dia, o que no fundo é a mesma mensagem. De um jeito ou de outro, estamos todos condenados. Mas, é claro, e isso é bem irritante, essa coisa toda ficou confusa depois daquela baboseira de Código Da Vinci." (pg. 46, Julia conversando)

"Você não pode mudar o passado, apenas o futuro, e o único lugar em que você podia mudar o futuro era no presente. É isso que eles diziam. Tilly não achava que alguma vez tivesse mudado alguma coisa. Exceto sua opinião." (pg. 30, Tilly pensando sobre sua vida)

"Quando a menina falasse alemão bem o suficiente para explicar sua situação para alguém, provavelmente já teria esquecido a mãe. Crianças esquecem rápido; é um mecanismo de proteção. Jackson os encontrarra muito mais rapidamente do que a engrenagem lenta da burocracia alemã teria sido capaz." (pg. 267, Jackson pensando sobre as crianças sequestradas)

"Sentia-se satisfeita pela cena parecer tão convincente; era tudo fingimento. Atuar, encaremos os fatos, era algo tolo. E tudo era uma tolice nos dias de hoje. Tudo era fingimento. Nada mais era real. Não havia profundidade. E pronto." (pg. 198, Tilly pensando sobre sua carreira de atriz)

Essa edição: ATKINSON, K. Saí cedo, levei meu cachorro. São Paulo: Editora Fundamento Educacional, 2013.

Tuesday, October 29, 2013

1808 - Laurentino Gomes

"Com os planos de expansão territorial fracassados, restou a D. João se concentrar na primeira - e mais ambiciosa - de suas tarefas: mudar o Brasil para reconstruir nos trópicos o sonhado império americano de Portugal. Nesse caso, as novidades começaram a aparecer num ritmo alucinante e teriam grande impacto no futuro do país. Na escala em Salvador, a decisão mais importante havia sido a abertura dos portos. Na chegada ao Rio de Janeiro, foi a concessão de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil. A medida, anunciada no dia 1o. de abril, revogava um alvará de 1785, que proibia a fabricação de qualquer produto na colônia. Combinada com a abertura dos portos, representava na prática o fim do sistema colonial. o Brasil libertava-se de três séculos de monopólio português e se integrava ao sistema internacional de produção e comércio como uma nação autônoma." (1808, pg. 193)
O livro é interessantíssimo! Sempre gostei muito de história, de maneira geral, mas desde a época do vestibular não me envolvia com leituras específicas. É impressionante como a nossa história (do Brasil) se repete ao longo dos séculos! Desde a chegada da corte ao país (e mesmo antes disso!) ocorre uma sequência similar: desde sempre há corruptos na administração pública que se enriqueceram e, ao invés de serem punidos, foram condecorados! Confirma esse trecho: "De origem italiana, Targini era de família catarinense pobre e humilde. Entrou no serviço público como guarda-livros, um trabalho menor na burocracia do governo da colônia. Como era inteligente e disciplinado, virou escrevente do erário e logo chegou ao mais alto cargo nessa repartição. Com a chegada da realeza ao Brasil, passou a acumular poder e honrarias. Encarregado de administrar as finanças públicas, o que incluía todos os contratos e pagamentos da corte, enriqueceu rapidamente. (...) Em meio à revolução constitucionalista de março de 1821, foi preso e teve seus bens confiscados. Duas semanas mais tarde, estava solto. Também foi proibido de retornar a Portugal com D. João VI, mas continuou a levar uma vida tranquila e confortável no Brasil" (pg. 174). E este é apenas um dos vários exemplos que são apresentados ao longo do livro. 

Me ative ao exemplo da corrupção pois acho que é o tema que está mais evidente na sociedade brasileira atual. E é uma discussão que vale a pena ser feita por todos nós. Apesar disso, são várias as passagens interessantes. O autor tece discussões sobre o povo brasileiro, a cultura européia no Brasil, as críticas feitas pelos estrangeiros ao país, o perfil de D. João e Carlota Joaquina (bem como de outros membros da família real), a constante participação da Inglaterra... enfim, vários acontecimentos que ocorreram no país e na Europa entre a chegada de D. João ao Brasil e sua volta para Portugal. 

A leitura é super tranquila, a escrita é bem fluida, e vale a pena ler para conhecer e entender melhor o nosso Brasil de hoje. São 310 páginas, e ao final há muitas Notas e a Bibliografia, o que faz parecer que o texto para leitura é maior. O próximo a ler da sequência é o 1822! Já tenho ele, mas vou dar um intervalo de um livro entre eles. Acho proveitoso dar um espaçamento entre livros da mesma série. 

Alguns outros trechos interessantes: 

"Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico Raízes do Brasil, mostrou que no Brasil colônia se tinha aversão ao trabalho. Segundo ele, o objetivo da aventura extrativista era explorar rapidamente toda a riqueza disponível com o menor esforço e sem nenhum compromisso com o futuro: 'O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho'" (pg. 58)

"James Tuckey deixou um registro curioso sobre as mulheres cariocas: 'Seus olhos, levemente puxados, negros, grandes, plenos e brilhantes dão um certo grau de vivacidade à sua tez morena e conferem alguma expressão à sua fisionomia. Trata-se, na maior parte das vezes, da manifestação de uma vivacidade animal, temperada com o toque leve e singelo da sensibilidade.' Tuckey, porém, fazia uma ressalva: 'As mulheres brasileiras têm, entre outros, o péssimo hábito de escarrar em público, não importando a hora, situação ou lugar. Tal hábito (...) forma um poderoso obstáculo ao império do charme feminino.'" (pg. 144/145 - achei muito divertida essa passagem sobre as mulheres da época!)

"Mais difícil do que diagnosticar a causa das doenças era combatê-la. Como em toda a colônia, não havia no Rio de Janeiro médicos formados em universidades. Uma forma rudimentar de Medicina era praticada pelos barbeiros. Thomas O'Neill, tenente da Marinha britânica que acompanhou D. João ao Brasil, ficou intrigado com o número de barbearias e os fins aos quais se destinavam: 'As barbearias são aqui bastante singulares. O símbolo dessas lojas é uma bacia, e o profissional que aí trabalha acumula três profissões: dentista, cirurgião e barbeiro.'" (pg. 150)

"A nova nobreza criada por D. João no Brasil tinha dinheiro, títulos e poder, mas nenhum traço de bom gosto ou sofisticação. Todos os cronistas e viajantes da época se referem ao Rio de Janeiro como uma cidade rica e próspera, sem refinamento. 'Percebe-se a exibição da quantidade, talvez uma forma de auto afirmação da nova elite', ponderou o historiador Jurandir Malerba. Ao chegar ao Brasil, em 1817, como ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o conde de Palmela achou tudo muito estranho. 'Falta gente branca, luxo, boas estradas, enfim faltam muitas coisas que o tempo dará', escreveu à mulher, que ficara em Portugal. 'Apesar de todas as despesas, não há sinais de esplendor ou elegância', observou James Henderson, o cônsul inglês, referindo-se ao caráter perdulário da corte." (pg. 179)

Esta edição: Gomes, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. 

Monday, October 28, 2013

A FELICIDADE, DESESPERADAMENTE - André Comte-Sponville

"(...) Ora, se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos, logo nunca somos felizes. Não que o desejo nunca seja satisfeito, a vida não é tão difícil assim. Mas é que, assim que um desejo é satisfeito, ele se abole como desejo: 'O prazer', escreverá Sartre, 'é a morte e o fracasso do desejo'. E, longe de ter o que desejamos, temos então o que desejávamos e já não desejamos. Como ser feliz não é ter o que desejávamos mas ter o que desejamos, isso nunca pode acontecer (já que, mais uma vez, só desejamos o que não temos). De modo que ora desejamos o que não temos, e sofremos com essa falta, ora temos o que, portanto, já não desejamos - e nos entendiamos, como escreverá Schopenhauer, ou nos apressamos a desejar outra coisa." (A Felicidade, Desesperadamente - pg. 28)

Os principais pontos de discussão abordados na obra dizem respeito à felicidade, à sabedoria e à filosofia. Trata-se de uma palestra que foi transformada em um livro e, ao final, são apresentadas perguntas feitas pelos participantes ao autor. Todo o livro é de grande riqueza, trazendo para a atualidade discursos centenários e que nos ajudam a tornar mais leve a nossa caminhada na vida. São pontos de vista que abrem nossa visão para novas possibilidades. 


Grande parte do livro discute a filosofia e a felicidade como elementos altamente relacionados: "O que é a filosofia? (...) Quanto a mim, adotei a resposta que Epicuro dava a essa pergunta. Ela assume devidamente a forma de uma definição: 'A filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios nos proporciona uma vida feliz'" (pg. 7). Assim como a sabedoria, conforme esta passagem: "A felicidade é a meta da filosofia. Ou, mais exatamente, a meta da filosofia é a sabedoria, portanto a felicidade - já que, mais uma vez, uma das ideias mais aceitas em toda a tradição filosófica, especialmente na tradição grega, é que se reconhece a sabedoria pela felicidade, em todo caso por certo tipo de felicidade" (pg. 9).

É um livro pequeno: são 89 páginas de texto corrido + 47 páginas com perguntas e respostas. A leitura é muito tranquila. Não me atrevo a fazer análises filosóficas da obra, visto que meu conhecimento para tal é insuficiente. Mas para o leitor comum, asseguro que é vantajoso e vale a pena a sua leitura. 

O autor faz uma crítica muito interessante que se encaixa perfeitamente às nossas rotinas atuais: "Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. (...) Pascal explica que jamais vivemos para o presente: vivemos um pouco para o passado, explica ele, e principalmente muito, muito, para o futuro. O fragmento termina da seguinte maneira: 'Assim, como nunca vivemos, esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.'" (pg. 36/37). Me identifiquei tanto com este trecho, que me pus a pensar em como reverter essa situação em minha vida... Ainda vou encontrar uma forma!

Abaixo, mais alguns trechos que achei interessantes: 

"O essencial é não mentir, e antes de mais nada não se mentir. Não se mentir sobre a vida, sobre nós mesmos, sobre a felicidade." (pg. 15)

"Enquanto você vê uma diferença entre a salvação e sua vida real, entre a sabedoria e sua vida como ela é, malsucedida, desperdiçada, malograda, você está na sua vida como ela é. A sabedoria não é outra vida, em que de repente tudo iria bem em seu casamento, em seu trabalho, na sociedade, mas outra maneira de viver esta vida, como ela é. Não se trata de esperar a sabedoria como outra vida; trata-se de aprender a amar esta vida como ela é..." ( pg. 126)

"É o que Schopenhauer chama de tédio, que é a ausência da felicidade no lugar mesmo da sua presença esperada. Você pensava: 'Como eu seria feliz se...' E ora o se não se realiza, e você é infeliz; ora ele se realiza, e você nem por isso é feliz: você se entedia ou deseja outra coisa." (pg. 35)

"É por isso que podemos ser felizes, é por isso que às vezes o somos: porque fazemos o que desejamos, porque desejamos o que fazemos!" (pg. 48)

"Só se espera o que se ignora: quando se sabe, já não há por que esperar." (pg. 54)

"Só esperamos o que somos incapazes de fazer, o que não depende de nós. Quando podemos fazer, não cabe mais esperar, trata-se e querer. É a terceira característica: a esperança é um desejo cuja satisfação não depende de nós." (pg. 57)

"Não é a falta que lhe falta; é a potência de gozar o que não lhe falta." (pg. 78)

Sobre esta edição: Comte-Sponville, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 146 p.

Sunday, June 30, 2013

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS - George Orwell

"De certa maneira, era como se a granja tivesse ficado rica sem que nenhum animal houvesse enriquecido - exceto, é claro, os porcos e os cachorros. Talvez isso acontecesse por existirem ali tantos porcos e tantos cachorros. (...) A verdade é que nem os porcos nem os cachorros produziam um só grama de alimento com seu trabalho; e havia um bocado deles, com o apetite sempre em forma." (A Revolução dos Bichos, George Orwell, pg. 103).

A sátira sobre o socialismo na antiga URSS, escrita por George Orwell, é muito interessante. A sua leitura é super fácil e, para quem não sabe que é uma sátira, se passa por um livro até infantil. A história, basicamente, gira em torno de uma fazenda que é tomada pelos animais e por eles comandada. Cada um tem sua tarefa e, inicialmente, visam o bem coletivo, sem a interferência do ser humano, que só servia para escravizá-los. Porém, com o passar do tempo, os animais vão tomando responsabilidades e atividades diversas, e a comida vai sempre ficando escassa para a maioria deles. Os princípios que nortearam a revolução vão aos poucos sendo modificados de acordo com os interesses da minoria líder, que acaba se tornando igual (ou pior) que os humanos.  

É muito interessante perceber a passagem, no decorrer do texto, de uma visão pluralista, em que todos estão satisfeitos e felizes, trabalhando em prol da coletividade, para uma visão autoritarista, em que, apesar dos constantes discursos envolvendo a todos, percebe-se claramente que alguns poucos estão se aproveitando da 'boa vontade' e do sentimento coletivo de melhoria da maioria. O site Info Escola traz uma resenha interessante da história, destrinchando os pormenores.   

Recomendo a leitura e, inclusive, com um olhar crítico, relacionando o que acontece na obra ao que ocorre no nosso dia a dia. O coletivo, infelizmente, tende a ser submetido aos interesses de poucos, o que pode acabar desvirtuando os princípios ideológicos de vários movimentos e tentativas de melhoria que visam o todo. Além disso fica claro que os líderes se aproveitam da 'memória curta' dos personagens que, por não se lembrarem bem de como determinados fatos tinham acontecido na realidade, acabavam aceitando novas imposições e mudanças nas 'leis' vigentes.  

Vamos aos trechos que achei mais interessantes do livro: 

"O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais." (Discurso de Major para todos os animais da granja, pg. 12)

"E lembrai-vos, camaradas, jamais deixai fraquejar vossa decisão. Nenhum argumento vos poderá desviar. Fechai os ouvidos quando vos disserem que o Homem e os animais têm interesses comuns, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O Homem não busca interesses que não os dele próprio." (Discurso de Major para todos os animais da granja, pg. 14)

"O mistério do leite de pronto se esclareceu. Era misturado à comida dos porcos. As maçãs estavam amadurecendo, e a grama do pomar cobria-se de frutas derrubadas pelo vento. Os bichos acharam que as frutas seriam distribuídas equitativamente; certo dia, porém, chegou ordem para que todas as frutas caídas fossem recolhidas e levadas ao depósito das ferramentas para o consumo dos porcos. Alguns bichos murmuraram a respeito, mas foi inútil." (Sobre o leite e as maçãs, pg. 33)

"Poucos dias mais tarde, quando já amainara o terror causado pelas execuções, alguns animais lembraram - ou julgaram lembrar - que o Sexto Mandamento rezava: "Nenhum animal matará outro animal". Embora ninguém o mencionasse ao alcance dos ouvidos dos porcos ou dos cachorros, parecia-lhes que a matança ocorrida não se encaixava muito bem nisso. Quitéria pediu a Benjamim que lesse o Sexto Mandamento, e quando Benjamim, como sempre, respondeu que se recusava a tomar parte em tais assuntos, ela procurou Maricota, que leu para ela o Sexto Mandamento. Dizia: "Nenhum animal matará outro animal, sem motivo"." (pg. 75)

Sobre essa edição: Orwell,George. A revolução dos bichos: um conto de fadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. (22a reimpressão)

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO - José Saramago

"(...) Este é o seu dia de morrer. Mãe, os cordeiros que de ti nasceram terão de morrer, mas tu não hás-de querer que morram antes do seu tempo, Cordeiros não são homens, muito menos se esses homens são filhos, Quando o Senhor mandou a Abraão que matasse seu filho Isaac, não se percebia então a diferença, Sou uma simples mulher, não te sei responder, só te peço que abandones esses maus pensamentos, Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as ações é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é a ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo, E tu estás em poder dele, Se foi pelo poder dele que este cordeiro teve a sua vida salva, alguma coisa se ganhou hoje no mundo. Maria não respondeu. (...)" (Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago, 1991 - 46a reimpressão - pg. 254)
Havia tempo que eu queria ler esta obra, mas sempre me prendia a outros livros e autores. Então ganhei este de presente de Natal, oportunidade mais que bem vinda para concluir mais uma leitura de Saramago. Já familiarizada com as características do autor, achei o texto bem tranquilo de ler.

A história, como o próprio nome diz, traz a vida de Jesus Cristo desde os acontecimentos antes de seu nascimento até o momento de sua morte. Desconhecedora que sou do texto bíblico, não vou afirmar quais partes do texto foram abrangidas ou não (mais um estímulo para ler a bíblia!). Mas o que me chamou a atenção é a forma que o autor apresenta os personagens, trazendo a imagem de que, antes de tudo, são pessoas 'comuns', que têm suas necessidades, seus sentimentos, seus medos, suas dúvidas e seus desejos. Isso perpetua por todo o texto, o que me fez sentir grande compaixão pelo personagem principal. Como disse no post sobre o livro Caim , pessoas devotas fervorosas provavelmente não irão gostar do livro, visto que ele apresenta este 'outro lado' dos personagens. 

Interessante a crítica tecida por José Paulo Paes, na contracapa do livro: "(...) Na que é de justiça reconhecer a melhor prosa de ficção da língua portuguesa de nossos dias, José Saramago nos conta mais uma vez a mesma história que vem sendo contada há tantos séculos. A mesma? Sim, se se tiver em vista tão só os personagens e os sucessos da fábula. Não, se se atentar para a nova carnadura de que aqui se revestem. Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão, presentificando-lhes as cores, cheiros, sons, movimentos, esmiuçando-lhes as ambiguidades e implicações em busca de significados recônditos por sob os ostensivos" (Texto presente na contracapa do livro).

Como de costume, passarei para os trechos interessantes do livro:

"O escriba endireitou lentamente a cabeça, olhou-o com a expressão de quem acabasse de sair de um sonho, e, após um longo, quase insuportável silêncio, disse, A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, Esse lobo de que tu falas já comeu meu pai, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado". (Conversa entre Jesus e um escriba no Templo, após a morte de José, pg. 213)

"(...)Eu avisei-te, disse Maria, com força, Avisaste-me quando o mal estava feito, se mal foi, que eu olho para mim e não o encontro, respondeu Jesus, Não há cego tão cego como aquele que não quer ver, disse Maria. Estas palavras enfadaram muito Jesus, que respondeu, repreensivo, Cala-te mulher, se os olhos do teu filho viram-no depois de ti, mas estes mesmos olhos, que para ti parece que estão cegos, viram também o que nunca viste e com certeza não verás. A autoridade do filho primogênito e a dureza do tom, além das enigmáticas palavras finais, fizeram ceder Maria, mas a sua resposta ainda levou uma última advertência, Perdoa-me, não foi minha intenção ofender-te, queira o Senhor guardar-te sempre a luz dos olhos e a luz da alma, disse." (Conversa entre Jesus, Maria e Tiago, quando Jesus tentara ajudar seu irmão nas atividades de carpintaria, pg. 299)

"De que se trata, perguntou Jesus, agora sem disfarçar o interesse, Todo homem, respondeu Deus, em tom de quem dá lição, seja ele quem for, esteja onde estiver, faça o que fizer, é um pecador, o pecado é, por assim dizer, tão inseparável do homem quanto o homem se tornou inseparável do pecado, Não respondeste à minha pergunta, Respondo, sim, e desta maneira, a única palavra que nenhum homem pode repelir como coisa não sua é Arrepende-te, porque todos os homens caíram em pecado, nem que fosse uma só vez, tiveram um mau pensamento, infringiram um costume, cometeram um crime menor ou maior, desprezaram quem deles precisou, faltaram aos deveres, ofenderam a religião e os seus ministros, renegaram a Deus, a esses homens não terás de dizer mais do que Arrependei-vos Arrependei-vos Arrependei-vos (...) (Conversa entre Jesus, Deus e o Diabo no barco, pg. 376).


Dados dessa edição: Saramago, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. (46a reimpressão).

Tuesday, February 5, 2013

O GATO DO BRASIL e outras histórias de terror e suspense - Sir Arthur Conan Doyle

"O charlatão é sempre um pioneiro. Do astrólogo veio o astrônomo, do alquimista, o químico, do mesmerista, o psicólogo experimental. O curandeiro de ontem é o médico de amanhã. Mesmo coisas sutis e impalpáveis como os sonhos serão no devido tempo reduzidas ao sistema e à ordem. Quando esse tempo chegar, as pesquisas dos nossos amigos naquela estante já não serão divertimentos místicos, mas os fundamentos da ciência." (Lionel Dacre, em o Funil de Couro)
Como o próprio título diz, é um livro de histórias de terror. São quatro títulos que tratam da alta sociedade, de pesquisadores, historiadores ou burgueses falidos que vivenciam situações assustadoras. É um livro muito rápido de ler, com apenas 64 páginas. 

Colo aqui o resumo que está na capa do livro: "Sir Arthur Conan Doyle, mais conhecido pelas histórias de Sherlock Holmes, era um exímio escritor de terror e de suspense psicológico. Esta coletânea reúne quatro contos nos quais o mistério e o macabro andam lado a lado. “O funil de couro”, “A nova catacumba”, “O caso de Lady Sannox” e “O gato do Brasil” são algumas das mais representativas histórias do gênero. Em “O funil de couro”, não há fronteiras entre o sonho e a realidade. “A nova catacumba” resgata o emocionante duelo entre duas mentes brilhantes. Já “O caso de Lady Sannox” é uma história sobre volúpia e prazer. Para fechar o volume, “O gato do Brasil”, que reserva um final surpreendente para este magnífico conjunto." 

Me diverti com sua leitura e acho que vale a pena! Não dá pra adiantar muitos trechos interessantes, pois com isso acabaria por revelar partes importantes das histórias! Elas surpreendem pelo suspense, terror e aquele resultado que não era de se esperar! 

Mas deixo aqui os dados dessa edição: DOYLE, Sir Arthur Conan Doyle. O gato do Brasil e outras histórias de terror e suspense. Porto Alegre: L&PM, 2012. (Coleção L&PM Pocket, v. 1019).

Saturday, January 26, 2013

CAPITÃES DA AREIA - Jorge Amado

"Depois o Sem-Pernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinquenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. E o grupo era de mais de cem crianças, pois muitas não dormiam no trapiche. (...) Nunca, porém, era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando. E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida." (Capitães da Areia, pg. 44). 
O livro é fantástico! Apesar de ter sido publicado pela primeira vez em 1937, ele trata de um tema muito atual na nossa sociedade, que é a vida dos meninos de rua. Sua leitura é muito fácil, com apenas 262 páginas, e me envolveu de tal maneira que não consegui parar de lê-lo. Essa obra já foi pedida em vários vestibulares, mas ainda não o tinha lido!  

Jorge Amado descreve os personagens com carinho, abordando o ponto de vista deles e as características que os diferenciam entre si. A partir das diversas histórias do bando, ele apresenta uma crítica forte ao modo como a nossa sociedade está organizada e como trata essas pessoas que estão à sua margem. Aborda ainda a rigidez que está presente neste mundo: apesar de furtarem e viverem como homens, são apenas crianças. 

A história se passa na cidade de Salvador. Trata-se de um grupo de crianças que vivem em um trapiche abandonado, próximo ao porto, que é liderado por Pedro Bala. Eles vivem como uma família, um apoiando  o outro, e possuem também regras implícitas, nunca escritas, que são seguidas por todos. Para sobreviverem, pedem comida nos restaurantes e casas mais abastadas, realizam roubos aplicando golpes, furtam de pessoas que estão distraídas, dentre outras ações do estilo. No meio da trama há também um romance, entre Pedro Bala e Dora, que chega ao trapiche trazida João Grande e Professor. Com os dias, alguns dos garotos encontram em Dora a mãe que nunca tiveram ou o amor que nunca sentiram. 

Por ter sido alvo de tandos estudos e vestibulares, há vários sites que descrevem e fazem críticas à obra, como este da UOL Vestibular, e o da Companhia das Letras, que apenas descreve um pouco a obra. 

Alguns trechos interessantes: 

"Sentiam mesmo como homens. Quando outras crianças só se preocupavam com brinca, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido como homens, na sua vida de miséria e de aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças. Porque o que faz a criança é o ambiente de casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca eles tiveram pai e mãe na vida da rua. E tiveram sempre que cuidar de si mesmos, foram sempre os responsáveis por si." (pg. 236)

"O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala. O diretor ainda recomenda. 
- Regime número 3. 
- Água e feijão... - murmura Ranulfo. Dá uma espiada em Pedro Bala, balança a cabeça - Vai sair bem mais magro. 
Lá fora é a liberdade e o sol. A cadeia, os presos na cadeia, a surra ensinaram a Pedro Bala que a liberdade é o bem maior do mundo." (pg. 197)

"Ela de longe sorria para Pedro Bala. Não havia nenhuma malícia no seu sorriso. Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de noiva ingênua e tímida. Talvez mesmo não soubessem que era amor. Apesar de não ser noite de lua, havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes piscava com um olho porque pensava que isto era namorar. E seu coração batia rápido quando o olhava. Não sabia que isso era amor." (pg. 187)

Esta edição: AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Companhia de Bolso)

Saturday, January 12, 2013

A CASA VERDE - Mario Vargas Llosa

"- E veja só para que me serviu a ambição - disse Fushía. - Para terminar mil vezes pior que você, que nunca teve ambições.              
-Deus não o ajudou, Fushía - disse Aquilino - Tudo o que acontece depende disso. 
- E por que não me ajudou e sim a outros? - disse Fushía. - Por que me arruinou e ajudou Reátegui, por exemplo?
- Pergunte quando morrer - disse Aquilino. - Como quer que eu saiba, Fushía."  (A Casa Verde, pg. 324)
Admito que estou com dificuldade em descrever este livro.  É uma obra muito peculiar... Já li outros livros do Vargas Llosa, e também de diversos outros autores, mas não me lembro de serem escritos de forma tão particular. A obra é apresentada em 404 páginas, divididas em quatro capítulos e o epílogo. Este é o segundo romance do autor, escrito em Paris, entre 1962 e 1965, e publicado originalmente em 1966. 

Basicamente, o autor conta a história de um prostíbulo que tinha suas paredes pintadas de verde e, por isso, acabou sendo chamada pelos moradores da cidade de 'Casa Verde'. Foi construída por Dom Anselmo, na pequena cidade de Piura (Peru), e causou grande alvoroço. A história gira em torno dos personagens que frenquentam/frequentaram o prostíbulo, bem como os/as profissionais que dele fazem/fizeram parte. O autor reúne, no decorrer da história, pequenas cidades do interior do Peru, floresta amazônica, tribos indígenas, contrabando de produtos produzidos pelos índios, corrupção, a dominação do branco sobre os indígenas, prostituição, pedofilia, dentre outros temas críticos até os dias atuais. 

O diferencial da narrativa é que o autor não apresenta os fatos em sua ordem cronológica, ou mesmo os apresenta em uma sequencia linear. Em um mesmo parágrafo o autor flutua entre o presente e o passado, deixando a cargo do leitor diferenciá-los. São vírgulas e pontos, ou um pronome, que nos evidencia o momento no tempo e quem está envolvido. O narrador também se envolve nessa mescla. Há trechos que são como o apresentado acima, em que se colocam os nomes dos personagens e não há nenhuma dificuldade em acompanhar o desenvolvimento. Porém há trechos em que o autor nem mesmo faz parágrafo: são páginas e páginas de diálogos, pensamentos, lembranças que contam apenas com a pontuação para se diferenciarem. Talvez algum dos livros de Saramago, que agora não me recordo o nome, se assemelhe a essa última característica.  

Apresento aqui a descrição colocada na capa do livro: "Com influências de William Faulkner e Gustave Flaubert, Varga Llosa cria um texto vibrante, em que a voz do narrador se mescla à fala dos personagens, e ações do passado e do presente se intercalam num fluxo inovador."

Acho que vale a pena ler. É bem curioso. As peças vão se juntando ao longo da história, e você  vai entendendo os porquês e quem é quem. Alguns trechos interessantes:

"- Não gosto dessas coisas, em Chicais quase fiquei doente - repetiu o Pequeno com uma careta de desagrado. - Não se lembram da velha peituda? Foi errado arrancar as crias assim. Sonhei com isso duas vezes. 
- E olhe que elas não arranharam você como fizeram comigo - disse o Louro, rindo; mas logo ficou sério e acrescentou: - Era para o bem delas Pequeno. Para ensinar a vestir-se, a ler e a falar cristão. 
- Ou prefere que elas continuem selvagens? - perguntou o Escuro." ( Trecho em que falavam sobre a catequese das índias crianças que eram levadas das tribos, pg. 121)

"É por isso que acho que as mágoas lá no fundo explicam tudo - disse o Jovem. É por isso que alguns viram bêbados, outros padres, outros assassinos." (pg. 236)

"No princípio tinha um pouquinho de medo, mas agora não, só ficava nervoso. O patrão teve medo alguma vez? Nunca, porque pobre que tem medo fica pobre a vida inteira. Mas não era bem assim, patrão, Nieves sempre foi pobre e a pobreza não obedecia ao medo. É que Nieves se conformava e o patrão, não." (pg. 285)

"E pergunta-se pela última vez se foi melhor ou pior, se a vida deve ser assim, e o que teria acontecido se ela não, se você e ela, se foi um sonho ou se as coisas são sempre diferentes dos sonhos, e faça um esforço final e pergunte-se se alguma vez você se resignou, e se é porque ela morreu ou porque é velho que você está tão conformado com a ideia de morrer." (pg. 349)

Sobre essa edição: Llosa, Mario Vargas. A casa verde. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. 407 p. 

Sunday, January 6, 2013

O ALIENISTA - Machado de Assis

"O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu: Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente." (O Alienista, pg. 9)
É um livro muito interessante, de um autor brasileiro de grande importância. Muito me agradou a sua leitura! Este título já foi alvo de muitas provas vestibulares, porém não o havia lido até hoje. É um livro pequeno, apenas 34 páginas. Bom, cabe destacar que a versão que li obtive gratuitamente no site Domínio Público, onde estão disponibilizadas várias obras, de diferentes autores. Vale a pena conferir e baixar! Destaco que no site há diversas versões de uma mesma obra. Esta que li, em particular, aponta a UNAMA (Universidade da Amazônia) como entidade que disponibilizou. Não possui a capa que apresento acima, mas apenas o título do livro com a origem do arquivo (UNAMA). 

É uma obra muito agradável de ler, que apresenta um vocabulário, as vezes, rebuscado e que é escrita de forma peculiar, característica do autor e das obras da sua época. Por seu tamanho e enredo sua leitura é bem rápida. 

O texto nos conta a história do médico português Simão Bacamarte, que vive na cidade de Itaguaí e alí resolve estudar a loucura. Resolve que, para isso, deve-se construir um local onde todos os 'loucos' devem viver juntos: a Casa Verde. Ele a construiu com o apoio do governo, alegando a grande importância dos seus estudos para a ciência e a medicina. Com esse objetivo, confinou grande parte dos moradores da cidade na Casa Verde, e com o tempo suscitou a desconfiança e o desconforto da população que ainda restava fora de seus muros. Houve então uma revolução, chefiada por um barbeiro da cidade - Porfírio -, que além de derrubar a Casa Verde, queria obter poder político. Porém suas reais intenções vêm a tona quando conversa em particular com o alienista.

Após esse momento, que acabou não interferindo nas suas experiências, Simão Bacamarte chega a conclusão de que aqueles que estão na Casa Verde não são os verdadeiros loucos e, sim, aqueles que gozam de total equilíbrio mental. Ou seja, os que gozam de equilíbrio constante são os loucos! O médico então libera todos os que estavam abrigados na Casa Verde e busca novos moradores, com características distintas daquelas iniciais. 

Vale a pena ler! Trechos interessantes:

"Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?" (pg. 18)

"Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura." (pg. 26)

"Um dia de manhã - dia em que a Câmara devia dar um grande baile, - a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. o Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato." (pg. 26)

"E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam." (pg. 33)

O LIVRO DE AREIA - Jorge Luis Borges

"A qualquer momento terei completado setenta e tantos anos; continuo dando aulas de inglês para alguns poucos alunos. Por indecisão ou por negligência ou por outras razões, não me casei, e agora estou só. Não sofro pela solidão; já é bastante esforço alguém tolerar a si mesmo e a suas próprias manias. Noto que estou envelhecendo; um sintoma inequívoco é o fato de que não me interessam ou surpreendem as novidades, talvez porque observe que nada de essencialmente novo há nelas e que não passam de tímidas variações." (O livro de areia - o congresso, pg. 21-22).
Encontrei esse livro em uma banca de jornal, o qual veio acompanhado de um outro exemplar, porém de poesia. Este ainda não li. O preço dos dois foi muito bom, o que me fez aproveitar essa oportunidade! Ainda não conhecia o autor, não havia lido nenhuma de suas obras, e esse livro me instigou a ler outras, futuramente. 

Deixando de lado detalhes de ordem diversa, foi uma leitura muito agradável e rápida. Linguagem fácil de entender. O autor divide o livro em 13 contos - se assim posso chamá-los -  que tratam de temas variados. Muita criatividade é apresentada nos textos. São histórias fantásticas que, apesar de muitas vezes serem curtas (2 ou 3 páginas, como "o disco"), te envolvem e te deixam com gostinho de 'quero mais'. Em algumas das histórias senti aquele desejo de saber mais, aquela vontade de descobrir o que vem depois... Por isso não leia buscando muita lógica nas histórias. O entender o texto se trata de sentir as palavras e o que o autor está tentando passar para o leitor. Indico fortemente a sua leitura!

Você pode adquirir o produto no site da Livraria Folha. Não há muito o que falar, há de se ler o livro para poder sorver todas as impressões! Mas abaixo apresento algumas passagens que achei interessante: 

"Meu sonho já durou setenta anos. Afinal, ao recordar, não existe ninguém que não se encontre consigo mesmo. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Você não gostaria de saber algo do meu passado, que é o futuro que o espera?" (Conversa entre ele e ele mesmo, mais jovem. Conto: o outro, pg. 9)

"Tudo isto é um milagre - conseguiu dizer - e milagres dão medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro devem ter ficado horrorizados." (Conversa entre ele e ele mesmo, mais jovem. Conto: o outro, pg. 14)

"A frase pretendia ser engenhosa e imaginei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que não combinava com ela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco." (Ulrica, pg. 16)

"- Eu gostaria que este momento durasse para sempre - murmurei. 
- Sempre é uma palavra que não e permitida aos homens..." (Ulrica, pg. 18)

"Os anos não modificam nossa essência, se é que temos alguma; o impulso que me levaria, uma noite, ao Congresso do Mundo foi o que me trouxe, inicialmente, à redação da Última Hora." ( O congresso, pg. 23)

"Senti o que sentimos quando alguém morre: a angústia, já inútil, de que nada nos teria custado ter sido melhores." (there are more things, pg. 39)

"Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. Não bastava a morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta para ferir a imaginação dos homens até o fim dos dias. O Senhor dispôs os fatos de modo patético." (A seita dos trinta, pg. 49)

"Também a mim a vida deu tudo. A todos a vida dá tudo, mas a maioria ignora isso. Minha voz está cansada e meus dedos fracos, mas escuta-me." (undr, pg. 67)

"Foi então que o desconhecido me disse:
- Olhe-a bem. Nunca mais a verá. 
Havia uma ameaça em sua afirmação, mas não na voz. 
Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Procurei em vão a figura da âncora, folha por folha." ( o livro de areia, pg. 96)

Sobre esta edição: BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: MEDIAfashion, 2012. 104 p. Coleção Folha. Liberatura ibero-americana; v. 1)