"Para lhe evitar preocupações e desgostos, aproveito suas ausências para me divertir à minha maneira - essa é a vantagem de ter um marido muito ocupado. Não gosta que eu ande descalça pela rua, porque já não sou escrava, que eu acompanhe Père Antoine e socorra pecadores no Pântano, porque é perigoso, nem que vá às bambousses da Praça do Congo, que são muito vagabundas. Nada disso eu conto a ele, e ele não me pergunta" (A Ilha Sob o Mar, Isabel Allende, pg. 476 - Zarité falando de seu marido, Zacharie)
Isabel Allende conta a história de Zarité, uma escrava em Saint Domingue - hoje Haiti -, quando a colônia pertencia à França. A história se passa entre 1770 e 1810. Narrativa rica de detalhes, nos faz imaginar todos os fatos e personagens envolvidos. A autora divide a obra em dois blocos de tempo e local distintos: o primeiro trata do período entre 1770 e 1793, em Saint Domingue e Cuba, enquanto o segundo retrata o período entre 1793 e 1810, na Louisiana.
Além disso, a autora divide a narrativa em dois pontos de vista. Alguns capítulos são vistos como contados pela autora, ou seja, um narrador externo que conta a história; enquanto outros capítulos são contados pela própria Zarité, enfatizando seu ponto de vista e seus sentimentos sobre os fatos e as pessoas. Os capítulos se completam, e tornam a história mais clara.
Zarité é filha de uma falecida escrava e, sob a posse de uma senhora, aos 9 anos é comprada para servir em uma fazenda à senhora Eugenia, esposa espanhola de um rico fazendeiro francês - Valmorain. Este chegou à ilha ainda com 18 anos, sem esperar que passaria toda sua vida dedicada às plantações de cana de açúcar e que delas tiraria o sua riqueza. Eugênia, após sucessivos abortos, deu a luz a Maurice, mas ela já sucumbia à depressão e outros transtornos, que a impossibilitou de cuidar do filho. Maurice foi criado como um filho por Zarité, que teve seu filho de sangue afastado de si pois era filho bastardo de Valmorain. Após alguns anos Zarité engravida novamente, dessa vez de uma menina, Rosette, que é criada junto com Maurice. Desde criança o amor entre eles floresceu, e durou até que a morte os separou. Com a guerra civil em Saint Domingue, Valmorain, Zarité e as duas crianças fogem para Cuba e, anos mais tarde, vão para Lousiana, recomeçar o cultivo da cana de açúcar. Nesse local, a vida recomeça para todos os personagens.
É um livro, a meu ver, muito bom e vale a pena conferir. É uma leitura fácil e rápida, mas é um drama. Os sentimentos afloram em algumas passagens! É muito evidente o preconceito e o racismo que imperavam naquela época e que ainda deixam vestígios na sociedade moderna. Uma vez que o romance é mesclado de fatos históricos do país, entende-se um pouco mais sobre as origens do Haiti e o porque dos problemas sociais encontrados ainda hoje. Um blog interessante que tece uma discussão sobre esse aspecto histórico é O Grito!, vale a pena conferir.
Além dos aspectos históricos, a narrativa resgata também costumes dos povos africanos, apresentando diferentes aspectos dessa cultura tão diferente, naquela época, da européia predominante. As diferenças culturais e de crença são pontos críticos explorados durante todo o texto.
Abaixo os trechos que selecionei da narrativa:
"- Na Inglaterra e nos Estados Unidos também há quem questione seriamente a escravidão e se recuse a consumir os produtos das ilhas, em especial o açúcar - lembrou Parmentier.
- São em número insignificante, doutor. Acabo de ler, numa revista científica, que os negros pertencem a uma espécie diferente da nossa.
- E como o autor explica que duas espécies diferentes tenham filhos? - perguntou o médico."
Diálogo entre Valmorain e Parmentier (médico da família). Pág. 92.
"- Todos querem ser livres.
- As mulheres nunca são livres, Tété. Precisam de um homem que cuide delas. Quando são solteiras, pertencem ao pai. Quando se casam, pertencem ao marido." Diálogo entre Valmorain e Zarité, sobre a liberdade dada por seu dono. Pág. 215.
"As duas compartilhavam a intimidade que costuma unir no exílio pessoas que jamais teriam trocado um único olhar se vivessem em seu lugar de origem." Sobre Violette e Adèle, em Cuba. Pág. 325.
"- ... Eu não sirvo para isso, senhor!
- Como você sabe? Todos nós temos uma reserva de forças inimaginável que emerge quando a vida nos põe à prova." Diálogo entre Maurice e seu professor Cobb, em Boston. Pág. 336.
No comments:
Post a Comment